Cães assintomáticos podem ter genes que os protegem da distrofia muscular
O mistério de Ringo e Suflair
Marcos Pivetta
Edição Online – 20/11/2010
Há sete anos, o golden retriever Ringo intriga os pesquisadores do Centro de Estudos do Genoma Humano da Universidade de São Paulo (USP), um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) financiados pela FAPESP. Ele tem uma mutação genética que o impede de produzir distrofina, proteína essencial para a manutenção da integridade dos músculos. O defeito deveria ter levado o cão a apresentar, desde muito cedo, os sinais clínicos clássicos de distrofia muscular, como dificuldade para andar e deglutir, e hoje provavelmente nem deveria estar mais vivo se tivesse desenvolvido a doença. Mas Ringo é sadio, praticamente normal. A mutação o fez no máximo puxar um pouco as patas traseiras. Quatro anos e meio atrás, teve um filho, Suflair, que, como ele, herdou o mesmo defeito genético, mas também não manifesta a distrofia. Outros irmãos de Suflair não tiveram a mesma sorte: morreram dias após nascer ou acabaram desenvolvendo distrofia muscular de forma severa.
Ringo e Suflair são exceções à regra. Por isso, têm sido alvo de vários estudos – e é de um desses trabalhos que saiu uma evidência de por que os músculos desses cachorros não sucumbiram à ausência de distrofina. Os animais parecem carregar genes ou mecanismos protetores que neutralizam total ou parcialmente os efeitos negativos da mutação causadora da doença. Num experimento feito em colaboração com o laboratório de Sergio Verjovski-Almeida, do Instituto de Química da USP, os pesquisadores viram que alguns genes dos cães assintomáticos eram menos expressos (ativados) que os dos animais doentes. “Nossa hipótese é de que a menor expressão desses genes pode conferir alguma forma de proteção aos cães e talvez ser importante para encontrarmos uma forma de combater a doença”, afima a geneticista Mayana Zatz, coordenadora do centro. “Estamos quebrando um paradigma e mostrando que nem sempre a falta da proteína leva à distrofia.” Como ainda não publicaram um artigo científico sobre o estudo, os geneticistas da USP preferem não dar mais detalhes sobre a localização do possível gene protetor.
As suspeitas de Mayana ganharam mais força quando sua equipe tomou contato com o trabalho da veterinária Diane Shelton, que chefia um laboratório na Universidade da Califórnia em San Diego (UCSD) especializado no diagnóstico de doenças neuromusculares em animais domésticos. Desde 2008, a pesquisadora americana contabiliza nove casos de cães que não produzem distrofina, mas não apresentam sintoma algum da doença. Os cães assintomáticos, no entanto, não são da raça golden retriever. São todos labradores e – detalhe interessante – oriundos de dois criadores de New Hampshire e Massachusetts, estados vizinhos da costa leste americana, que partilharam uma mesma fêmea para produzir a ninhada de cães. “Olhando para os cães, ninguém consegue dizer que eles têm distrofia”, diz Diane. “Acho que fatores modificadores desempenham algum papel para que esses cachorros sejam clinicamente normais.”
Labrador assintomático – A notícia da descoberta dos labradores assintomáticos caiu literalmente no colo da equipe brasileira. Há alguns meses, a bióloga Natássia Vieira, que faz doutorado sob orientação de Mayana e estuda o uso de células-tronco nas distrofias musculares, estava num seminário em Boston quando ouviu uma apresentação de Diane Shelton. Além de relatar a história dos cães americanos, a veterinária disse, em sua exposição, que iria entrar em contato com a “mãe” do Ringo, o golden retriever assintomático estudado há tempos na USP, para enviar amostras de DNA dos labradores. Nem foi preciso sair da sala para a parceria ter início. Diane foi imediatamente apresentada a Natássia, que estava na plateia, e alguns dias depois a brasileira recebeu as amostras antes de deixar Boston e voltar para o Brasil.
Comparar o DNA dos golden retriever e dos labradores assintomáticos pode acelerar o caminho para encontrar supostos mecanismos moleculares de proteção à distrofia muscular . A estratégia ganhou mais força ainda quando a equipe de Mayana deixou escapar um pequeno segredo da alcova canina. “Ringo e Suflair não são puros”, afirma Natássia. “Eles carregam material genético da raça labrador.” Um quarto do genoma de Ringo e um oitavo do de Suflair devem ser originários da outra raça. Mayana conta que ficou furiosa quando, anos atrás, descobriu que uma das golden retriever, portadora da mutação no gene da distrofina, havia sido cruzada com um labrador. Hoje comemora o fato de ter sido agraciada com uma colônia de cães impuros: “A mistura com labrador pode ter livrado Ringo e Suflair de terem a doença”.
A procura por supostos genes capazes de compensar a falta de produção de distrofina e evitar a manifestação dos sintomas da doença levou a equipe da USP a estabelecer recentemente uma parceria internacional com um dos maiores especialistas no estudo das bases genéticas das distrofias musculares, Louis Kunkel, professor da Escola Médica de Harvard. Em 1987, Kunkel descobriu a causa da distrofia muscular de Duchenne: identificou no cromossomo X o gene da distrofina que, quando alvo de mutações, deixa de produzir sua respectiva proteína. “Se descobrirmos que outro gene ou genes, além da distrofina, podem realmente modificar o quadro da doença em cachorros, esses genes e suas proteínas poderiam ser grandes alvos para terapias em humanos”, afirma Kunkel.
No laboratório do pesquisador americano, Natássia está usando o zebrafish, peixe adotado como modelo animal de doenças, para descobrir se os candidatos a gene protetor da distrofia muscular identificados em Ringo e Suflair atenuam ou até evitam os sintomas da doença. “Nossa ideia é fazer os supostos genes protetores se expressarem em peixes com distrofia da mesma forma que nos cachorros assintomáticos e ver qual é a repercussão clínica dessa abordagem”, diz Natássia. Se a estratégia funcionar, os pesquisadores provavelmente terão feito uma descoberta importante. Se não der resultados, será necessário estudar ainda mais Ringo, Suflair e seus “primos” labradores assintomáticos. De qualquer forma, a notícia de que músculos sem distrofina podem se manter funcionais é animadora.
Fonte: revistapesquisa.fapesp.br
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